the answers you seek will never be found at home

A névoa adensava os carros que subiam a cortina serrana que se estendia pelos próximos 400 quilômetros, em direção ao planalto. Aos poucos, a suave brisa marítima era substituída por um frio e estável vento rarefeito, e a vegetação oscilava entre mata atlântica e a agradável vista das araucárias. Havia boa quantidade de carros, suficientes para alguns momentos de lentidão, porém nenhum congestionamento se formaria até a chegada a cidade mais alta do estado. Estabelecimentos improvisados e completamente familiares dividiam espaço entre as encostas da estrada ascendente, com seus anúncios de pinhão e hortaliças típicas daquela região. Algumas casas se distribuíam irregular e esparsamente entre as pequenas cidades com vista aconchegante porém decadente devido a prefeituras insistentemente negligentes e uma população facilmente satisfeita. O desenvolvimento, em raio limitado à região metropolitana da capital, se mostrava rápido com diversos condomínios na encosta da serra do mar propagandeado por outdoors que pareceram ser feitos sob medida para soarem falsos e particularmente deslocados de seus respectivos fundos. As cidades iam empobrecendo com o aclive, diretamente proporcionais ao grau de penetração à serra. A névoa era insistente e transformava os campos, buracos entre desfiladeiros de montanhas de media altura, em postulações nostálgicas; exalavam aquele tipo de otimismo que remete ao passado. Era difícil não sentir vontade de tomar um café daqueles semi-barracos enquanto se divagava por perdidos olhares nas encostas – as mortíferas encostas, que propagavam pela estrada cruzes brancas consistentemente no andar dos quilômetros.
A serra sempre me trazia bons pensamentos. Me deixava esperançoso, me afundava em agradáveis reflexões, enquanto meus ouvidos iam se acostumando com boa vontade ao inflexível barulho da cidade sendo substituído por um silencioso eco de folhas se movendo com o preguiçoso vento montanhoso. Um estranho calafrio na barriga me surpreendeu enquanto pensava sobre a condição mais contraditória, paralela e inerente à vida: a morte. As cruzes brancas, a visão embaralhada pela névoa, o ócio do silêncio serrano, os extensos declives e acentuadas subidas, aquilo ecoava alguns ruídos da fragilidade de toda a existência lívida. E ao mesmo tempo, todo calafrio, seja pelo frio cortante ou por oscilantes pensamentos, todos aqueles calafrios – ressaltavam aspectos necessários para que tenhamos uma proveitosa estadia pelos estepes humanos. Eu beberiquei alguns goles de vinho tinto que levava numa pequena garrafa plástica e queria logo terminar um livro, mas a paisagem insistia em me prender em localidade, em cada araucária, em cada barraca de pinhão, em cada idoso batalhando as subidas em suas antigas bicicletas. Assistia com avidez e atenção todas as placas, as indicações de distância encurtando, era um expectador leal. Não ansiava para aquela viagem terminar, por mim ela se estenderia até a terra dos castellanos, porém o leve trânsito e um motorista competente fariam minha vontade logo se dissolver em curiosidade pela cidade que em seguia eu ia conhecer.

Citação: Bronski Beat - Smalltown Boy

como se apenas

Como se eu conseguisse me portar indiferentemente. Como se eu pudesse ignorar tudo isso, ignorar toda a minha mágoa e ressentimento e apenas fingir estar tudo bem. Não que não consiga fazer isso, mas o tempo de boa atuação é limitado. Busco alternativas e soluções; busco mudança e busco outros ares. O tempo passa vagarosamente porém passa sem se deixar percebido, apenas debitando suas contas depois de ter sido perdido. Ele lembra, com as estações, que não foi aproveitado com o ardor que deveria, que não está sendo... deixa-se penar pela nostalgia que afunda e que ao menos rende algumas risadas verdadeiras, aquelas escassas. Nada é tão terrível, apenas o nonsense do desestímulo, do desânimo, que ecoa desestruturando qualquer vontade, desestruturando qualquer ação que libere possibilidade. Ecoa distorcendo a linha mais para o pessimismo, descendo ela para outros baixos.
Como se eu soubesse de verdade de tudo o que deveria saber, como se me desse conta da autenticidade do que ando sentindo. Anseio por saber se tudo é extremismo meu, se gosto do que as vezes penso gostar, se tudo não passa da ilusão da força. Ilusão da falta. Me desfoquei, me tirei dos trilhos, e, quando escrevo afirmando que eu que fiz isso, confirmo minha culpa - tenho conhecimento dela.
Como se quisesse estar assim...

this living wreck will come again

A praça central da cidade era um refúgio visível à correria e ao sufoco dos estreitos e cheios calçadões do bairro, e trabalhadores cansados dividiam espaço com turistas carregando câmeras e idosos jogando baralho ou dominó. Gabriel sentou-se em um dos bancos, esperando pelo horário de suas aulas de francês com insuportáveis alunos de escolas particulares com absolutamente nada à se preocupar, apenas com qual viagem iriam fazer nas férias seguintes, ou qual ração seus cachorros deveriam comer. Gabriel, após mexer desajeitadamente em seu ondulado cabelo castanho, tirou um cigarro e, antes de acender, foi interromido de seus devaneios por um homem, com uma aparência de desequilíbrio mental e com uma bíblia na mão, tentando entregar-lhe um panfleto. Para evitar qualquer prolongamento daquela interrupção, prontamente pegou o papel – que aclamava as vitórias do poder da fé cristã e todo aquele velho discurso que se arrasta desde remotos tempos em diferentes embalagens sociais para que os humanos insistem em chamar de fé, e que no fundo é só a tentativa de sentir que sua vida é permeada por algum sentido ou base que faz dela de tremendo valor. Para Gabriel, era absurdo pensar nisso – a vida por si só, estar aqui, vivendo, rodeado por infinitas possibilidades, aquilo já era o sentido. Querer mais, em sua realista visão, era inerente aos ignorantes, aos pobres de conhecimento. Viver sem qualquer tipo de amarra, independente. Gabriel levava essa filosofia – por si só constituindo uma profunda crença e um traço visível e forte de sua identidade – por meios extremados e isso transparecia em sua falta de paciência com relacionamentos, no medo que nutria em sua vida social. Tinha aversão das pessoas, que crescera durante os ultimos meses de forma assustadora, mas bastante sociável. Mas seu medo também direcionava-se para a solidão – e, mesmo sendo solitário por concepção, estava cansado daquilo ser quase uma regra. De criar justificativas falsas para não se envolver com ninguém. Sentia-se em um pesado purgatório mental, sentia culpa e sentia que nunca tinha tido nada verdadeiro com ninguém - e recorria ao extremismo para justificar isso que não era inteiramente verdade.

Citação: Mudhoney - Living Wreck

a cama desfeita

" - Na minha opinião, já é muito estúpido perguntar se alguém ama você, e é ainda mais estúpido nos perguntarmos se amamos alguém - concluiu ele."
Françoise Sagan, A Cama Desfeita

Frequentemente fazemos perguntas a nós mesmos nos destinando a achar algo, a achar sentimentos verdadeiros por pessoas reais. É chato, é triste, é idiota essas perguntas, porque acabamos nos forçando a tais sentimentos. Indagamos em decorrência de nossa frívola necessidade de sentir algo - e existem os melancólicos períodos onde entramos em um vácuo sentimental, embalados por pessimismo e desânimo, criando um efeito dominó que se propaga por nossa vida sentimental. E não se traduz calmamente; é confuso, é nublado e, talvez mais corretamente, é intenso. Traz sérias reflexões, e, dependendo da personalidade, pode levar a alguns extremos, aos excessos ou ao simples vazio.
Independente de onde nos levem, as perguntas tem o benefício de uma limpeza, mudam perspectivas, os modos de encarar as coisas, uma mudança mais profunda...

um milhão de ruas sem saída

Uma praia vazia, no mínimo - silenciosa, ecoando por sua extensão apenas pelo som do mar vindo ao encontro da areia.
Intenso frio, frio cortante, frio envolvente.
Uma pessoa apenas, entrando em termos com seu atualmente desolador espírito solitários, nos aspectos de concordância e conformismo.
O privilégio do mar de ser a única fonte de som seria quebrado por alguma música; o ócio dominante quebrado por alguns cigarros e uma garrafa de vinho - pra mais.
Não ter que lidar, ligar, responder; pensar em respostas para perguntas de outros. Encarar as suas perguntas, naquele momento ambíguas indagações nada bem formuladas o bastante para renderem respostas, ou melhor, possibilidades de respostas concretas.
Respirar, fundo o bastante para chorar todas as lágrimas há tanto guardadas, reprimidas. Deixando tudo sair, naquele que seria um ideal momento de solidão. De uma forma ou de outra, todos andam sendo da mais profunda solidão, mas não restava muita escapatória porque as pessoas teimavam em ir e vir ao seu redor, trazendo complicações não bem vindas. Naquele momento, porém, não haveria mais ninguém, não estaria em questão a convivência, a obrigação do dia-a-dia de dizer algo direcionado aos outros. O perfeito escape.
Esvaziar a mente de qualquer drama idiota e não pensar em que o amanhã aguardaria mais obrigações em um período de tempo longo demais; tempo que anda passando absurdamente rápido porém embarcado em um absoluto vazio. Era como se os dias caminhassem apressadamente em uma rotina que os deixavam sentados em si mesmos, parados, imóveis. Apressavam-se, porém pareciam tanto entre si que deixavam uma sensação de que ainda não haviam passado. Esvaziar-se dessa idéia para que eles mudassem, quem sabe. Mas ao mesmo tempo havia o intuito de tirar qualquer expectativa - elas revelavam-se tolas e, de qualquer forma, cada vez mais escassas.
Em suma, um refúgio seguro para depósito de pensamentos, especialmente depósito daquele estado que trazia uma mistura quase assassina de sentimentos de ódio, de tristeza, de cansaço, sentimentos que remetiam um nada; intercalando-se com agonia e nervosismo ímpares - quem sabe por ansiedade de qualquer outra coisa porém aquilo. Mistura que agia como um tipo de areia movediça, afundando, aprofundando-se. E que sentimento idiota, sem razão específica, que bateu e está custando a sair. Quem sabe ele não está tristemente predizendo o que será o resto daquela estação, ou de algum período indeterminado de tempo. Porque a crença de que algo bom está chegando anda esparsa e fina demais para ser mesmo considerada uma crença, já que há pouca (possivelmente nenhuma) fé envolvida. Ridículo, ele, aquilo, a situação, o que se tornara.

Citação: David Bowie - Changes

to nowhere

"Corra, o mais rápido que puder! Faça o que quer que faça, corra no limite da máxima velocidade que conseguir alcançar, pela distância que quiser, porque não vai importar" ela disse, sentada ao chão. O quarto parecia ser circular mesmo que quadrado; as paredes tinham uma cor ilusória que variava entre o branco e o preto, em uma confusa ótica. Havia fumaça, e um cheiro familiar inundando aquele temeroso espaço. Não era possível ver o rosto da mulher, ela estava em um nível de chão mais baixo e a fumaça encobria sua face. Seus pés estavam arcados para cima, ambos contraídos. Ele corria uniformemente e em linha reta, porém não saía do lugar. Estava frio, frio que cortava sua pele, mas ele não chegava a sentí-lo realmente. Sua cabeça estava doendo fortemente; seu corpo também. Se sentia pesado, natimorto, moribundo. A mulher começou a rir, repetiu sua frase e continuou a rir, de um modo repulsivo. Ele, continuava correndo, e continuava em seu ponto de partida. Os risos estavam mais altos e começaram a se misturar; haviam outras vozes de pessoas que dessa vez ele conhecia, mas não ligava as vozes as pessoas, mesmo sabendo ser muito próximo dessas. Se misturaram e subiram de volume até se tornarem um som ensurdecedor, inclassificável e não identificável. Um som agudo, de forte penetração, de um denso torpor.
Uma queda.
Acordou - acreditando ainda estar em queda, por alguns segundos. Sua cabeça doía, seu coração estava acelerado. Seu corpo estava retraído de frio; a janela aberta com um vento gelado soprando e as cobertas longe - tinha tirado a blusa, também. Estava fraco, talvez porque tivesse ido para cama sem ter comido nada durante o dia inteiro. Procurou pelas horas; estava próximo da manhã, onde teria que acordar, outra vez, para outra queda. E assim seguia.